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Indiscutivelmente, a covid-19 mudou a sociedade global de forma definitiva em níveis sociais, políticos, econômicos e, por que não dizer, psicológicos? Claro, a partir dela, nos espantamos com a nossa tamanha insignificância e pequenez, ao ponto de nós, seres humanos, a espécie mais inteligente do planeta, que subiu aos céus e desejou as estrelas, sucumbirmos diante de uma ameaça invisível, causada por minúsculo parasita intracelular. O destino, ao que parece, não existe sem uma certa ironia, como dizia o ‘grande Morpheus’ no clássico filme ‘The Matrix’
A covid-19 também corroborou para o surgimento de um outro problema: (parafraseando novamente o aludido filme) “uma consciência singular que gerou uma raça inteira” de especialistas de tudo e que não sabem de absolutamente nada. Esses “especialistas” (e leia-se aqui no tom mais irônico possível), sentem uma enorme compulsão por divulgar informações oriundas das vozes em suas cabeças.
Um dos assuntos que entrou no radar dessas fascinantes criaturas é um suposto cancelamento das eleições municipais deste ano. Inclusive acreditando (e divulgando) que as mesmas já estão canceladas. Quando na verdade, até uma eventual modificação constitucional, o pleito do dia 4 de outubro de 2020 está marcado. E assim o está desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Se, por ventura, houver a necessidade de um adiamento dessa data, este deverá ser feito por meio de uma Emenda Constitucional. Não estou aqui dizendo que não pode ser adiada a aludida data. Havendo a impossibilidade de comparecimento do eleitor para exercer seu direito de votar, as eleições serão adiadas, mas, diferentemente do que rezam os politólogos e juristas de facebook e WhatsApp (e, aos mais modernos, Instagram) a possibilidade de um adiamento para o ano seguinte ou, ainda, para 2022 é, praticamente impossível por uma série de motivos jurídicos, políticos, sociais e lógicos.
O importante a ser esclarecido é: salvo disposição legislativa futura, as eleições ocorrerão normalmente em outubro de 2020. Qualquer pessoa que disser algo diferente desta afirmação está faltando a razão. A data está marcada! Se houver alteração deste dia é outra história. Recentemente, a atual presidente do TSE, Ministra Rosa Maria Weber, teceu comentários sobre o assunto, dizendo que o debate é precoce. O próximo presidente do Tribunal em questão, Ministro Luís Roberto Barroso, por sua vez, até reconhece a possibilidade de adiamento do pleito, por um período curto,no máximo até dezembro, mas se mostrou totalmente contrário ao adiamento para 2022, afirmando que as eleições periódicas são vitais para a democracia. Concordo com o Ministro. Não vejo nenhuma vantagem na unificação em 2022. Neste sentido, o presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Rodrigo Maia também se manifestou como sendo possível um adiamento do pleito para o final do ano, mas descartou, de forma veemente a realização do pleito em outro ano, bem como a prorrogação de mandato, por motivos óbvios. Estender os mandatos dos eleitos em 2016 para 2022 não só é antidemocrático, como antirrepublicano e, hermeneuticamente inconstitucional
Não foi dada, aos eleitos, os poderes para representar a população por mais de 4 anos, a própria constituição estabelece isso, em seu artigo 29, inciso I. Prorrogar os mandatos dos prefeitos e vereadores abre um precedente perigosíssimo para a democracia brasileira. Isto é óbvio.
E nesta semana, fomos surpreendidos pela cereja do bolo: uma notícia divulgada, principalmente nos jornais Correio Brasiliense, Estado de São Paulo e portal UOL sobre a possibilidade de juízes assumirem o controle do executivo municipal no caso de adiamento das eleições.
Lamentavelmente, alguns meios de comunicação usaram um título um tanto quanto sensacionalista para divulgar essa mirabolante proposta.
Não existe lei que permita que membros do judiciário exerçam a chefia do executivo municipal em caso de adiamento das eleições. Simplesmente não existe. O que a matéria jornalística trata é de uma possibilidade invocada por parlamentares para não estender os mandatos em caso de adiamento do pleito, o que, mais uma vez é importante frisar, juridicamente e politicamente, é quase impossível a realização das eleições municipais em outro ano que não for 2020.
Esta “proposta” esbarra em questões jurídico-constitucionais básicas. Primeiramente, a natureza institucional da função jurisdicional não é de representação política. Os magistrados no Brasil não ingressam em suas funções por voto, mas, via de regra, por meio de concurso público.
Em segundo lugar, o artigo 95, parágrafo único, inciso III da Constituição Federal (dentro do capítulo III, Seção I, que trata das disposições gerais do Poder Judiciário) veta, expressamente, ao magistrado, dedicar-se à atividade político partidária.
Além disso, a Lei Orgânica da Magistratura, em seu artigo 26, inciso II, alínea C, determina que perderá o cargo o magistrado que exercer atividade político-partidária.
Portanto, a mera deliberação de uma proposta como essa, assim como de adiar o pleito para outro ano ou, ainda, estender os mandatos dos atuais eleitos são, pura e simplesmente, aberrações e bizarrices que não se sustentam nem em um plano minimamente teórico. Importante ainda lembrar que a discussão de unificar as eleições já foi objeto de deliberação na reforma política de 2015 e foi derrotada
A regra é a lei, altera-la é a exceção. A regra é a eleição ocorrer em outubro de 2020, a exceção é muda-la. O pleito está marcado para ocorrer nesta data, qualquer eventual mudança é a exceção e deverá ser modificado pelo Congresso Nacional em um árduo, complexo e demorado processo.
Por fim, invocar o argumento de adiamento das eleições, em um período tão sensível e triste para a população como este, é covardia.