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17 de maio de 2024ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO EM AMBIENTE INSTITUCIONAL DE ACOLHIMENTO
O afastamento de crianças e adolescentes de suas famílias de origem não é fenômeno recente, embora seja, muitas vezes, atribuído aos atuais avanços da modernidade, à desestruturação familiar, aos novos modelos de composição da família e problemas de ordem social (Brasil, 2006). Essas e outras circunstâncias levam pais ou responsáveis a buscarem abrigo em instituições assistenciais ou acolhimento por famílias substitutas pela necessidade de proteção contra a violência (física, moral, subjetiva), o abandono e o descaso com as crianças e adolescentes.
Orfanatos, educandários, santas casas, casas de misericórdia, abrigos, casas-lares e unidades de acolhimento são denominações comuns de entidades assistenciais que têm recebido crianças e adolescentes sob seus cuidados quando são afastados da convivência familiar e comunitária (Silva; Aquino, 2005). Embora infância e adolescência sejam importantes etapas no processo de formação do indivíduo e do desenvolvimento humano (em várias dimensões do ciclo vital: física, cognitiva, afetiva, moral, psicológica, social, educacional), crianças e jovens têm sido negligenciados pelo atendimento inadequado às suas demandas biopsicossociais (Xavier; Nunes, 2015).
Nesse sentido, o acolhimento institucional de crianças e adolescentes pode, provisoriamente, suprir o abandono e suas carências, mas o acolhimento em uma instituição assistencial é medida protetiva de caráter excepcional e provisório, de curta duração (máximo de dois anos), enquanto os acolhidos aguardam o momento para retornar ao convívio com a família de origem. Na impossibilidade de retorno à família original, opta-se pelo seu encaminhamento a uma família substituta, uma instituição assistencial ou à adoção (Brasil, 2006, 2008, 2009).
Entre as causas da institucionalização despontam o abandono dos pais, a negligência, a violência e o abuso (Brasil, 2009). Outras causas se alinham com origens diversas: fuga do lar sem paradeiro definido, famílias impossibilitadas de outorgar cuidado e proteção (higiene, alimentação), pobreza (a principal delas), descaso com a função parental (omissão do cuidado), dependência química dos pais (álcool, drogas), lar sem condições de habitação, detenção dos genitores, vivência de rua, violência doméstica (maus-tratos físicos e psicológicos), orfandade, deficiência mental dos pais, baixa escolaridade, famílias numerosas, ausência de um dos cuidadores, depressão materna (Fonseca, 2017). Em casos menos comuns, estão presentes a gravidez não planejada na adolescência sem suporte social, pai/mãe com múltiplos parceiros, expectativas excessivamente altas ou irrealistas em relação à criança e ao adolescente, casos de prostituição (Costa, 2016).
A institucionalização é evento estressante para crianças e adolescentes: muda o ambiente, implica alto grau de tensão e interfere no comportamento respondente dos sujeitos. Alto nível de estresse tende a constituir-se fator de risco ao seu desenvolvimento e enseja o surgimento de ampla variedade de distúrbios físicos e mentais e adoecimento (Maia; Williams, 2005; Siqueira; Dell’Aglio, 2006; Silva; Silva; 2022). Presente na realidade de muitas famílias brasileiras em condições de vulnerabilidades e condições socioeconômicas desfavoráveis, a institucionalização na infância e na adolescência interfere nas suas condições de vida e no desenvolvimento durante todo o período de acolhimento e deixa sequelas (Siqueira; Dell’Aglio, 2006).
Neste universo, a área da Saúde deve contemplar o desenvolvimento infanto-juvenil e, ao prover atenção adequada às singularidades dos usuários, “resguardar os direitos de sigilo, privacidade, acolhimento e atenção independentemente de consentimento familiar e/ou dos responsáveis, entre outras garantias éticas” (Brasil, 2014, p. 15). Silva e Silva (2022) destacam a resiliência associada ao afeto positivo como forte potencial em desfazer os efeitos físicos e psicológicos nocivos de situações estressantes e relacionam o afeto negativo com distúrbio subjetivo e engajamento não prazeroso no ajuste psicossocial. Delvan, Becker e Braun (2010, p. 350) veem na resiliência um processo para superar as adversidades e adaptar-se ao contexto de forma saudável. Isto implica construir ambientes de apoio e condições em que familiares, responsáveis, profissionais de saúde e de setores correlatos assumam condutas de abertura ao diálogo, de comunicação eficiente e de construção compartilhada de saberes, de acolhida às dúvidas e de suporte à emancipação gradual e responsável das crianças e adolescentes (Brasil, 2014).
Para Fava e Pacheco (2017), alguns desses eventos estressantes (os maus-tratos, v.g.) são fatores de risco associados a psicopatologias do desenvolvimento da criança ou do adolescente. Maus-tratos e violência, diversas formas de abuso (o abuso sexual é o mais frequente), agressão física e psicológica e negligência provocam efeitos profundamente severos no curso de suas vidas, vindo relacionados a problemas de saúde mental e prejudicando o desenvolvimento infanto-juvenil.
Para Maia e Williams (2005, p. 92), “nenhum outro fator de risco tem uma associação mais forte com a psicopatologia do desenvolvimento do que uma criança maltratada”. As sequelas, geralmente traumatizantes, alcançam vários domínios do desenvolvimento, como cognição, linguagem, desempenho escolar, desenvolvimento psicomotor e socioemocional. Crianças e adolescentes institucionalizados, quando maltratados, tendem a expressar déficit de habilidades no desenvolvimento, lacunas na manutenção do afeto, da empatia, de interesses e no seu comportamento habitual (Maia; Williams, 2005). Podem, também, expressar carência de autoestima, comportamentos transgressores e agressivos (Barros; Silva, 2006; Pesce, 2009; Fava; Pacheco, 2017), sofrer graves prejuízos em seu desenvolvimento biopsicossocial (cognitivo, afetivo e social), sem garantias à sua proteção, expondo-os à violência institucional (Andrade; Carvalhaes; Silva, 2023).
As principais manifestações de comportamento de crianças e adolescentes institucionalizadas, destacados por Maia e Williams (2005), incluem: desordem emocional ou comportamental por violência física (maus-tratos corporais), negligência e privação de necessidades essenciais, violência psicológica (ameaças, humilhações, privações emocionais, exposição à violência conjugal) e violência sexual (abuso, prostituição). Siqueira et Dell’Aglio (2006) aventam a possibilidade de prejuízo aumentado por um ambiente institucional com poucas possibilidades de interação entre cuidadores e crianças/adolescentes e de impacto disruptivo imediato que provoca fortes impactos psicológicos e sociais para os assistidos. Na mitigação dos efeitos danosos da separação compulsória de crianças ou adolescentes e suas mães/pais, merece destaque a figura de pessoa conhecida (ou de objetos familiares) no novo ambiente (Silveira, 2021; Pontes; Braga; Jorge, 2022). Maia e Willians (2005) apontam três fatores que contribuem para a proteção desses sujeitos: atributos disposicionais (autonomia, orientação social positiva, autoestima, preferências), características da família (afetividade, ausência de conflitos ou de negligência) e fontes de apoio individual ou institucional (relacionamentos, suporte social e cultural, atendimento individual médico e psicológico, instituição religiosa).
Para Cardoso (2019) e Barbosa, Antunes e Camargo (2022), a reinserção da criança ou do adolescente na família de origem, todavia, pode ser dificultada pelo desinteresse de parentes em assumirem a guarda. Com isso, a permanência na instituição de acolhimento sem uma expectativa real de saída pode alongar-se por anos e, à medida que a criança cresce, diminui a possibilidade de reinserção na família de origem ou de adoção, haja vista que, no Brasil, a maioria das pessoas ainda prefere a adoção de bebês ou crianças pequenas (Lima, 2021). Cabe aos espaços institucionais oferecer diferentes serviços de acolhimento segundo as necessidades de cada criança e adolescente, de modo profissional, não intuitivo, ou seja, é preciso construir com clareza um projeto de atendimento e regresso à família e à sociedade.
Dependendo do impacto das situações de risco na vida do indivíduo ou da família, existe uma hierarquização dos serviços de proteção que, conforme o Sistema Único de Assistência Social (SUAS, 2018), se distribuem em básico, especial de média e alta complexidade. As instituições de acolhimento se emolduram na proteção especial de alta complexidade, com acolhimento classificado como serviço de Proteção Social Especial de Alta Complexidade. Uma instituição de acolhimento deve garantir a “proteção integral (moradia, alimentação, higiene, segurança, educação, saúde) a crianças e adolescentes em situação de ameaça, negligência ou violência” (Fonseca et al., 2020, p. 75). Assim, ao abrigar crianças e adolescentes, a instituição deve garantir sua integridade física e psíquica e assegurar a manutenção dos vínculos familiares e comunitários, em especial, os vínculos afetivos com as figuras parentais para um desenvolvimento saudável da criança (Brasil, 2006, 2009).
Ao retornarem às suas famílias nucleares, o tempo de permanência na instituição deixa marcas impactantes na criança ou adolescente que podem ter seu desenvolvimento social, cognitivo e emocional comprometido pelo afastamento familiar (sentimento de insegurança, medo, ansiedade, impasses de relacionamento) ou pela insatisfatória qualidade da assistência ofertada (Siqueira; Dell’Aglio, 2006; Diniz; Assis; Souza, 2018; Silveira, 2021). Crianças institucionalizadas precocemente sofrem significativos danos físicos e mentais (Lima et al., 2018), cujos sintomas típicos das experiências da institucionalização incluem, dentre os mais comuns: relacionamento superficial, pouco sentimento verdadeiro, falta de interesse por pessoas ou por construir e manter amizades profundas, inacessibilidade, irritação para os que tentam ajudá-las, pouca reação emocional em situações em que isto seria normal, despreocupação com tudo (especialmente com a vida), falsidade e frequentes evasivas imotivadas, furtos constantes, dificuldades de concentração escolar.
Uma institucionalização por período prolongado impacta fortemente a vida dos abrigados e interfere na sociabilidade e manutenção de vínculos afetivos quando chegam à vida adulta (Siqueira; Dell’Aglio, 2006; Andrade; Carvalhaes; Silva, 2023). A institucionalização ocupa espaços vazios deixados pelo abandono de familiares e amigos próximos que atribuem à instituição a responsabilidade pela custódia e educação dessas crianças e adolescentes; gera déficit intelectual pela insuficiente oferta (ou oferta empobrecida) de estímulos educativos e de desenvolvimento geral; induz distração e dificuldades de aprendizagem, agressividade, problemas emocionais e de comportamento, dificuldade em criar laços afetivos duráveis, vínculos e apego a alguém (Rocha; Maciel; Cassol, 2021; Rosa; Bridi; Bridi Filho, 2022).
Essas instituições são responsáveis por zelar pela integridade física e emocional de crianças e adolescentes que foram desassistidas e tiveram seus direitos violados (Silva; Aquino, 2005). Todavia, nem sempre representam o melhor ambiente de desenvolvimento, porque o “atendimento padronizado, o alto índice de criança por cuidador, a falta de atividades planejadas e a fragilidade das redes de apoio social e afetivo são alguns dos aspectos relacionados aos prejuízos que a vivência institucional pode operar no indivíduo” (Carvalho et al., 2015, p. 60). Siqueira e Dell’aglio (2006) salientam, contudo, que, pelas oportunidades do atendimento oferecidas em uma instituição, diante dos casos de situações ainda mais adversas na família ou no ambiente social permeadas por violência e exposição a riscos os mais variados, o acolhimento institucional pode ser a melhor opção.
A infância é considerada a fase mais importante no curso da vida de uma pessoa: nesta fase, a criança dá início e sequência ao desenvolvimento cognitivo, biológico e psicossocial (Xavier; Nunes, 2015). Além disso, a criança vive diferentes condições ambientais, essenciais para seu desenvolvimento, e necessita de proteção e afeto (Fonseca, 2017), garantia de direitos (à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, convivência familiar e comunitária), cuja efetividade deve ser proporcionada em parceria da família com o Estado e a sociedade, dentro de um ambiente seguro e satisfatório (Brasil, 2008).
No entanto, as violações de seus direitos e garantias e as consequências da institucionalização sobre o desenvolvimento são fortes e imprevisíveis em todas as dimensões – biológica, humana, individual e social, psíquica, de relacionamentos etc. (Siqueira; Dell’Aglio, 2006). Uma de suas mais relevantes consequências está associada à ruptura de vínculos e a situações de violência, apontadas como eventos estressantes de vida e possível fator de risco ao desenvolvimento nestas fases, com resultados indesejáveis como a depressão (Fonseca 2017).
Outra consequência marcante da institucionalização de crianças e adolescentes é expressa pela dificuldade de retorno à família e à comunidade: com o tempo prolongado na condição de acolhidos, os laços afetivos se fragilizam e as referências desaparecem (Siqueira; Dell’Aglio, 2006; Aguiar; Carrero; Rondina, 2007). Quebrados os elos familiares e comunitários com o afastamento, as alternativas se tornam cada vez mais restritas, e os acolhidos têm grandes chances de apresentar problemas de socialização e manutenção de vínculos afetivos quando adultos, uma vez que “os danos causados pela institucionalização serão tanto maiores quanto maior for o tempo de espera, que interfere não só na adaptação em caso de retorno à família de origem, como nos casos de inserção em família substituta” (Silva, 2004, p. 64).
Rotos os laços afetivos, os percursos de vida perdem contatos valiosos, os caminhos se estreitam e a desconexão familiar e social se agrava: diante de uma reintegração familiar e social pouco provável, essas crianças e adolescente são transferidos de uma instituição a outra, tendo, como resultado, dificuldade de acreditar que seja possível qualquer mudança. A exclusão da família gera abalos exponenciais às crianças e jovens, grande impacto no desenvolvimento emocional (desordem emocional) e social, efeitos negativos no contexto escolar (como fracasso escolar) e outros prejuízos na vida pessoal (Souza; Panúncio-Pinto; Fiorati, 2019).
O grupo familiar tem papel fundamental na constituição dos indivíduos, na determinação e organização da personalidade; influencia, de modo significativo, no comportamento individual pelas ações, exemplos e medidas educativas veiculadas no âmbito familiar (Pratta; Santos, 2007). Também é responsável pelo processo de socialização primária ao estabelecer normas e limites para as relações interpessoais, promovendo adaptação das pessoas às exigências do convívio em sociedade. É na dinâmica familiar que, em comunhão com outros ambientes, se estabelecem os vínculos mais duradouros, os embates, as rupturas e as reconciliações, os insucessos e as superações, as aproximações e os ajustes que contribuirão para a sua formação na vida adulta. As experiências genuínas vivenciadas pela criança e pelo jovem em termos de afeto, dor, medo, raiva e inúmeras outras emoções vão possibilitar o aprendizado essencial para sua atuação futura (Pratta; Santos, 2007). Após a infância, a adolescência, período evolutivo crucial para o desenvolvimento, culmina com o processo maturativo biopsicossocial, aquisição da imagem corporal definitiva e estruturação final da personalidade (Pratta; Santos; 2007).
Maia e Williams (2005) advertem, porém, que, diariamente, crianças e jovens são submetidos, em seus próprios lares, a sérias condições de riscos e prejuízos a seu desenvolvimento, como violência doméstica (física e psicológica), castigos deprimentes, imposições físicas aviltantes, negligência, abandono, prostituição, falta de higiene e outros fatores de risco, transformando a realidade da infância e adolescência em um desafio a ser enfrentado pela sociedade. Parra, Oliveira e Maturana (2019) admitem existir, também no abrigo, um paradoxo entre proteção e risco, facilitador e empecilho do desenvolvimento dos albergados: por mais que seja um local destinado a acolher, assistir e proteger, há evidências de fatores de risco e impactos negativos presentes na institucionalização, como déficits, dificuldades de adaptação, agressividade excessiva e insurgências e, sobretudo, carência de afetos.
A separação é um momento delicado e, com frequência, traz desordem na rotina, confusão nos pensamentos, mudanças na vida social e interfere na formação da personalidade, ainda incompleta, da criança ou do adolescente (Xavier; Nunes, 2015). Maia e Williams (2005) acentuam que a violência psicológica (ameaças, humilhações, privação emocional) pode conduzir ao suicídio, morte, danificação de propriedade, agressão à vítima ou a seus entes queridos, mormente com prejuízos nos pensamentos intrapessoais (medo, baixa estima, sintomas de ansiedade e depressão, ideações suicidas), na saúde emocional (instabilidade, dificuldades em controlar impulso e raiva, abuso de substâncias), nas habilidades sociais (baixa competência social, problemas de apego, pouca simpatia e empatia, delinquência e criminalidade), no aprendizado (fracasso escolar, prejuízo moral) e na saúde física (queixa somática, falha no desenvolvimento, alta mortalidade). Dependendo do estágio de desenvolvimento da criança ou do jovem, a violência psicológica varia em severidade, intensidade, gravidade, frequência, cronicidade e apaziguamento. Para Fava e Pacheco (2017), o abuso emocional refere agressões verbais e situações humilhantes que diminuem o senso do valor e bem-estar da criança e do adolescente.
Os serviços de acolhimento a crianças e adolescentes integram os Serviços de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social, tenham eles natureza público-estatal ou não. Devem acolher uma perspectiva da proteção integral pautada na Constituição Federal Brasileira, nos pressupostos do Estatuto da Criança e do Adolescente, nas Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes e diretrizes emanadas por elaborações correlatas como a Norma Operacional Básica do SUAS (Brasil, 2006, 2009; SUAS, 2018; Fonseca et al., 2020).
Em que pese o apanágio de proteção e resguardo à integridade dos direitos e peculiaridades infanto-juvenis, a institucionalização, muitas vezes, atravessa a trajetória de vida desses sujeitos e interfere diretamente nos seus relacionamentos interpessoais e habilidades, na organização psíquica e na formação (ou destituição) de vínculos, gerando impactos nem sempre positivos na esfera psíquica e emocional. O rompimento do poder familiar na infância ou na adolescência expõe uma relação intrínseca com síndromes psiquiátricas e sintomas associados, com a personalidade psicótica, a depressão, a delinquência e o suicídio (Diniz; Assis; Souza, 2018). Além de não terem supridas suas necessidades afetivas, essas crianças e adolescentes são privadas de lazer e comunicação com o ambiente externo, vivenciam apenas o contexto da instituição sem identificá-la como um lugar agradável, mas onde são obrigadas a permanecer. Logo, um abrigo pode configurar-se como fator de risco para o desenvolvimento socioafetivo da criança e do jovem.
É nessa complexidade de aspectos multifacetados da institucionalização de crianças e adolescentes que o psicólogo deve atuar com a equipe multidisciplinar (CFP, 2016; Diniz; Assis; Souza, 2018). Como o SUAS é relativamente novo (Brasil, 2009), ainda estão em construção orientações e referências técnicas, normativas e marcos legais de seus equipamentos. A escassez de diretrizes bem delineadas e de materiais de orientação relacionados à atuação do psicólogo nas unidades de acolhimento institucional amplia dificuldades e desafios no desempenho de seu trabalho e aporta impactos nas relações entre essas instituições e a prestação de um trabalho interdisciplinar (CRP, 2021). Todavia, sua atuação favorecer o enfrentamento das situações vividas pelas crianças e jovens e receber suas famílias e equipe técnica da instituição em ambiente afetivo e acolhedor (Aguiar; Carrero; Rondina, 2007). O CFP (2016) compila os parâmetros atuais das atribuições do psicólogo nas instituições de acolhimento a crianças e adolescentes no âmbito do SUAS: proporcionar espaço de escuta aos profissionais do acolhimento, auxiliá-los na compreensão das situações cotidianas da instituição e propor possíveis intervenções para os momentos mais críticos com os usuários; participar da construção de rotinas adequadas às características do público atendido; contribuir para minimizar o adoecimento psíquico das equipes e para a qualificação do atendimento ao usuário; articular a rede de serviços para garantir o atendimento aos acolhidos, abrir espaços de interlocução de saberes com os profissionais das diversas áreas; atuar para o fortalecimento de vínculos entre usuários e comunidade, estimular as atividades externas; considerar a condição de vulnerabilidade, risco pessoal e rompimentos afetivos dos acolhidos; preservar um olhar atento sobre as particularidades da história individual que lhe possibilite intervenções singulares a cada sujeito.
Silva et al. (2015) acentuam, ainda, a competência do psicólogo em apoiar a equipe técnica a realizar um trabalho interdisciplinar com as famílias e a comunidade da criança e do adolescente visando manter uma convivência social saudável; estabelecer contato e parcerias com a rede socioassistencial; abrir oportunidades de interação para re¬integração e retorno ao núcleo familiar, com garantias de direitos e proteção. O psicólogo deve colocar-se como mediador da criança com a instituição, a família e a comunidade (CFP, 2007, 2021) e comprometer-se a capacitar e instrumentalizar a equipe (Aguiar; Carrero; Rondina, 2007; CFP, 2016).
Moreira e Paiva (2015) e Gomes (2016) confirmam que o trabalho do psicólogo em instituição de acolhimento de crianças e jovens se direciona a promover um trabalho entre crianças/jovens, famílias e sua rede de suporte social. Na instituição de acolhimento, deve participar do processo de integração e inserção no grupo da instituição; promover, de forma multidisciplinar, um ambiente relacional facilitador da recepção e integração das crianças/jovens e seu contato com a realidade do seu dia a dia; participar de reuniões periódicas com a equipe técnica, avaliar e acompanhar o percurso individual de cada acolhido; elaborar e implementar atividades formativas dos educadores; fazer avaliações psicológicas periódicas e traçar linhas de orientação e intervenção; realizar acompanhamento psicossocial dos acolhidos e suas famílias; oferecer apoio psicológico, aconselhamento e diagnóstico das necessidades e encaminhamento; promover a solução de conflitos; participar das entrevistas com as famílias e de visitas domiciliares; participar dos momentos de convívio com as famílias dos acolhidos; assistir a equipe multidisciplinar no processo de desvinculação de crianças e jovens; orientar e acompanhar a saída da instituição.
Ressalta-se que as ligações afetivas, internas ou externas, formadas a partir do contexto da instituição, desempenham papel vital e constituem fator de proteção no desenvolvimento infanto-juvenil (Maia; Williams, 2005). Em casos de retorno à família de origem, é importante o apoio social, mediado pelo psicólogo, como instrumento positivo de transformação calcado pela relação solidária de ajuda e criação de condições favoráveis ao enfrentamento de “situações opressivas ou de dificuldades, construindo um sentimento de pertença” alicerçado nos laços de afetividade (Barbosa; Antunes; Camargo, 2022, p. 13).
A atuação do psicólogo requer um olhar crítico, contextualizado, e uma práxis que suavize as marcas da violência física (lesões, coerção, sedução, abuso e exploração sexual) e psicológica ou emocional (danos à autoestima, à identidade, ao desenvolvimento: rejeição, humilhação, constrangimento, ameaças, discriminação, desrespeito, objetificação, abandono, negligência) trazidas pela história dos acolhidos (Aguiar; Carrero; Rondina, 2007; Silva et al., 2015; CFP, 2016). É imperioso que as estratégias construídas ofereçam às crianças e adolescentes um clima e cuidados facilitadores do seu desenvolvimento integral, superação de vivências de separação e violência, apropriação e ressignificação de sua história de vida, fortalecimento da cidadania, autonomia e inserção social (Brasil, 2009; Silva et al., 2021).
Pinheiro, Campelo e Valente (2022) destacam que a equipe técnica (em particular, o psicólogo em interface com o assistente social) deve trabalhar a criança e o jovem no sentido de planejar estratégias possíveis para a saída do acolhimento, retorno à família e inserção autônoma na vida adulta. É um trabalho que demanda ações de preparação para o trabalho, continuidade dos estudos, vida em liberdade e fortalecimento gradativo da autonomia, habilidades, aptidões e competências de acordo com o processo de desenvolvimento nas diferentes faixas etárias.
A prática da psicologia nas instituições de acolhimento foca o fortalecimento identitário e vínculos familiares dos acolhidos por meio da promoção de atividades lúdicas, conversas individuais e em grupo (Silva et al., 2015; Barbi, 2021). O psicólogo tem como principais desafios os impasses advindos da intersetorialidade entre os mecanismos da rede de Assistência Social e os limites de atuação inerentes à profissão (Barbi, 2021) e a ausência de referenciais específicos para suas práticas, o que, de certo modo, inviabiliza uma padronização do atendimento segundo o SUAS. A atuação do psicólogo nesse ambiente busca a mudança social pela conscientização de seus integrantes para situar-se no lugar que ocupam na sociedade (Barbi, 2021).
Na relação com o acolhido, o psicólogo participa da construção de ações do Plano Individual de Acolhimento, permite espaços para reflexão e compreensão do indivíduo como sujeito de direitos segundo as peculiaridades de seu ciclo de vida e as circunstâncias que o conduziram ao acolhimento, propondo estratégias na perspectiva de superar violações. Como membro da equipe técnica, deve contribuir para garantir espaços de acolhida, formação e reflexão dos trabalhadores do serviço na compreensão das especificidades dos vínculos estabelecidos no acolhimento, marcado pela transitoriedade (CRP, 2021). É, ainda, dever do psicólogo resguardar-se de “julgamento moral e imposição de regras ao sujeito de direitos, além de seguir as determinações do Código de Ética Profissional do Psicólogo e Orientações Técnicas para o Serviço de Acolhimento” (CFP, 2016, p. 30). O Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2014, Art. 1º, alínea C) propõe como um dever fundamental do psicólogo: “Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional”. Isto significa que o psicólogo não atua apenas para suprir as fragilidades da rede ou da precariedade da assistência ofertada, mas atua para mediar, articular e potencializar o trabalho em rede pela atuação multi e interdisciplinar, imprescindível à garantia de direitos das crianças e adolescentes. Não lhe é permitido utilizar seu conhecimento e práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência, devendo pautar seu trabalho no “respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano”, bem como “promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades” (CFP, 2014, p. 7), assim contribuindo para eliminar quaisquer formas de negligência, discriminação, violência, exploração, crueldade e opressão (CFP, 2014; CFP, 2021). O trabalho do psicólogo é sobremaneira importante nas instituições que acolhem crianças e adolescentes, quer na avaliação das crianças, adolescente e suas famílias, quer nos reflexos sobre as mudanças para reinseri-los no lar de origem e na comunidade, preservar vínculos familiares e comunitários e proporcionar treinamentos e suporte psicológico à equipe técnica. No trabalho com a equipe, o psicólogo auxilia na elaboração e manejo das ações e atividades a serem implementadas e contribui com orientações e capacitações de cuidadores, gestores e equipe. Acrescentam-se, ainda, as intervenções que favoreçam a melhor organização da família para lidar com as dificuldades e os problemas existentes (Diniz; Assis; Souza, 2018). É pertinente e necessário que o psicólogo e componentes da equipe técnica devotem um olhar integrativo e sistêmico para a soma de forças em benefício das crianças e adolescentes institucionalizados, para que se tornem capazes de transformar sua própria história de vida e o meio social de sua inserção (Silva et al., 2015). Esta perspectiva a demarca uma visão integradora e contextual que reflita a atuação interdisciplinar do psicólogo no acolhimento desses sujeitos dentro da instituição e na recuperação, fortalecimento e manutenção dos vínculos familiares e comunitários. O psicólogo não atua sozinho em contexto institucional de abrigamento, mas em trabalho interdisciplinar (Aguiar; Carrero; Rondina, 2007), cujo foco prioritário é o bem-estar de crianças e adolescentes (vítimas dos maus-tratos) e suas famílias, de forma a evitar que danos ainda maiores lhes possam sobrevir no futuro.