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2020, o ano que acabará

Zé Renato é professor de Filosofia da UniJales

ARTIGO REVOLUIR
Por Zé Renato

O início dos anos oitenta me traz uma agradável nostalgia. Calma! Não sou saudosista. Não vivo como Gil Pender, personagem do maravilhoso ‘Meia Noite em Paris’, de Woody Allen, cujo sonho era voltar aos anos vinte. Vivi. Foi ótimo. Passou

Por que razão produz essa sensação? Tinha uma aura de melhoras, uma vã expectativa de que as coisas mudariam. Verdade, coincidiu com minha graduação em Filosofia, com a descoberta da “Beat Generation”, Jack London, Whitman, o Blues e o Jazz eram ainda mais presentes em minha vida. O cinema era um caso à parte: “Paris, Texas”, a oportuníssima revisão de Casablanca, de Hitchcock, o surrealismo, Belchior, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Mautner… De Gil é muito vivo o disco “Extra”; de Caetano, “Velo”; de Mautner, “O Anti Maldito”.
O Bar Riviera, a Boemia e a vida à mil no bairro do Bexiga, seus bares, a livraria do Flávio Gikovate, brilhante psicanalista, aberta de madrugada; bebíamos, ouvíamos ótima música – blues, jazz, música brasileira, rock -. Conversávamos, ríamos, discutíamos e, sonhávamos!
Havia naquele início de década uma sensação, um forte desejo, melhor dizendo, de que o mundo, em particular o Brasil, mudaria. Para melhor: a ditadura acabaria, com ela a corrupção, as injustiças sociais, as desigualdades, enfim, um mundo novo.

Nasci em 1960, em julho. O traste do Jânio ainda estava de presidente. Antes que fizesse um mês de vida, renunciou. A história já explicou: o fascitóide queria dar um golpe. O congresso aceitou. Jango não conseguia assumir: militares, empresários, igreja e a classe mé(r)dia, não permitiam. Vivemos um parlamentarismo “tropical”, tapa-buraco. O plebiscito redimiu João Goulart. Assumiu como presidente, de fato e de direito

Recordo-me no Cine Belas Artes, em 1984, assistindo ao documentário “Jango”, de Silvio Tendler. Lindo, emocionante; narrativa impecável de José Wilker.
Tinha tudo para dar certo! Uma plêiade de ministros. Dentre eles, Darcy Ribeiro, na Educação.
Goulart anunciou as “reformas de base”: reforma agrária, combate à escravidão (sim, isso mesmo), apoio aos trabalhadores urbanos e rurais.
O mundo vivia aquilo que Eric Hobsbawn chamou de “Era do Pleno Emprego”. O capitalismo era produtivo, havia empregos, ofertas. Quem não se lembra da música “Sinca Chambord”, do Camisa de Vênus? “…O presidente João Goulart, um dia falou na TV, que a gente ia ter muita grana…”.
Todavia, estávamos em meio à “Guerra Fria”. O êxito recente da Revolução Cubana produziu pânico entre os reacionários e reforçou seu desejo de golpe. Além do respaldo dos Estados Unidos.

Recordo-me bem: morava no bairro da Aclimação, na capital. Os babacas explodiam fogos, estouravam rojões com o golpe dado. Me é muito viva, também, a lembrança de meu pai enfurecido com aquilo que ocorrera. Não compreendia, evidente. Hoje sei. Cresci durante a ditadura militar. Minha infância se deu no seu mais sangrento momento: as torturas, o aviltamento pleno dos direitos, os assassinatos. O medo estampado

No geral, as pessoas viviam entorpecidas. A grande maioria não fazia a mínima ideia do que ocorria. Tudo censurado. Educação alienada, suporte básico da imbecilização plena, imposta pelos militares; pior, tudo turbinado pelo “milagre econômico”, ação criminosa, pautada em empréstimos gigantescos, criando uma ilusão de estabilidade econômica e financeira, cujos resultados seriam notados a partir de 1973, com a crise do petróleo: disparada da inflação, explosão no custo de vida, desemprego, temperados pela violência nas ruas e torturas às escondidas.
As ruas, principalmente à noite, eram repletas de policiais, de soldados fortemente armados. Bloqueios e revistas.
Falava-se em tom indeterminado de prisão de “terroristas”.
Havia censura aos meios de comunicação e arte. Nesse sentido, a televisão exerceu um importante papel: contribuir para a elevação da alienação, da ignorância em relação àquilo que ocorria no Brasil. Somado a uma educação imbecilizante. Plano perfeito: um exército de alienados e ignorantes formou-se no país, a ponto de deixá-lo sem memória. Pior: mais tarde, muitos, pelas mesmas razões, passaram a negar a existência da ditadura ou defendê-la.
É revoltante ouvir brasileiros dizendo que aquela época era boa, pois não tinha violência, roubos; havia paz, não tinha corrupção. O Brasil estava bem.
Boa para quem?

Como disse acima, havia o capitalismo produtivo, portanto, o fantasma do desemprego somente começou a mostrar seu espectro a partir de 1973 – a crise do petróleo -, principalmente, a partir dos anos oitenta, com a política do neoliberalismo posta em prática. Todavia, é lícito lembrar: quando João Goulart foi derrubado, o Brasil tinha uma dívida externa de três milhões de dólares e uma inflação de sessenta por cento ao ano. Quando os militares deixaram (?) o governo, a inflação era de duzentos e vinte por cento ao ano e a dívida externa saltou para cento e dez bilhões de dólares. Poderia aqui descrever muitas razões para isso. Por exemplo: escândalos de corrupção como a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a Hidrelétrica de Itaipu, a Coroa-Brastel, por exemplo. Dúvida: leia os ‘Mandarins da República’, de José Carlos de Assis, publicado em 1983

Dizer que não havia violência, roubo é, no mínimo, desconhecer por completo a história desse lugar. Primeiro: os roubos eram em menor quantidade, sim, pois a população era menor, a exclusão ainda não havia atingido o grau que chegou ao final dos anos setenta.
Violência é um caso à parte: o que dizer do sumiço do deputado Rubens Paiva? Foi levado da porta de sua residência, enquanto se preparava para ir à praia, com a esposa e filhos. A família nunca conseguiu reaver o corpo para um sepultamento digno. E o caso de Stuart Angel? Um jovem que, por protestar contra a ditadura, foi preso e torturado: foi arrastado por um jipe, com a boca presa ao cano de descarga do escapamento. Provavelmente, foi jogado ao mar, vivo, com vários outros. Sua namorada, torturada, antes de ser assassinada teve os seios arrancados. Zuzu Angel, mãe de Stuart, ao buscar seu filho, denunciou ao mundo a ditadura brasileira, denunciou atrocidades. Foi morta. 1976.
E os operários Santos Dias e Manuel Fiel Filho, cujas viúvas lutam até hoje pelo direito ao sepultamento?

O que dizer, à época, de um menino de dezesseis anos preso junto com os pais? A mãe, acorrentada a uma cadeira num andar. Pai e filho levados para o andar de cima. Ambos acorrentados, cada um numa cadeira. O pai começa a ser torturado na frente do filho. Grita de dor. O filho grita de desespero, ao ver o pai torturado. No andar inferior, a mãe grita, ao ouvir marido e filho gritarem. Resultado: pai e mãe suicidaram-se. O filho, à época do depoimento para um documentário, contava quarenta anos. Declarou que somente dormia à base de remédios

Por fim, basta ler o livro “Batismo de Sangue”, de Frei Beto. Não gosta de ler? Sei, tem muita coisa escrita. Então, veja o filme do Helvécio Raton. Saiba o que ocorreu com quatro frades dominicanos. Presos e torturados. Um deles, Frei Tito, de tão barbarizado, física e psicologicamente, suicidou-se em Paris, em 1974. Sentia a sombra de Sergio Paranhos Fleuri.
Poderia descrever barbáries por mais mil páginas. Porém, isso basta. Creio.
Quem pode ser nominado de terrorista?
Cresci. Estudante secundarista, meados dos anos setenta, ainda vivia o medo, o temor de andar nas ruas. As famosas “gerais” da ROTA eram comuns e assustadoras. Passei por várias.

Por essa época descobri Albert Camus, “O Estrangeiro”, Franz Kafka, “Metamorfose”, redescobri Graciliano Ramos, “Vidas Secas”, “São Bernardo”, Machado de Assis, “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Jorge Amado, “Capitães da Areia”, “Seara Vermelha”, Jorge Luís Borges, “O Aleph”, Julio Cortazar “O Jogo da Amarelinha”, “Histórias de Cronópios e Fama”, a poesia de Fernando Pessoa, John Steinbeck, “A Pérola”, “Vinhas da Ira”, Ernest Hemingway, “O Velho e o Mar”, “O Sol Também se Levanta”, Faulkner, Fitzgerald, Sartre…para citar alguns…
Na música, por volta de 1977, descobri de vez o Blues: Muddy Waters, Howlin Wolf, Elmore James…no Jazz: Miles Davis, Charlie Parker (devo ao Cortazar, no belo conto: El Perseguidor), Monk, Chat Baker, Duke Ellington, Benny Goodman…
Também já disse: cinema é um caso à parte. As salas do Cine Bijou, as sessões malditas do Gemini, o Cine Sesc, o Augusta, o Liberty, o Astor, depois o Cine Belas Artes. Me mostraram Truffault, Godard, Glauber Rocha, Fellini, Antonioni, Visconti, Coppola, Scorsese, Cimino, Clint Eastwood, os filmes “Noir”…

Decidi estudar Filosofia. Queria saber como alguém era capaz de pensar, escrever aquelas coisas, traduzi-las em imagens.
Naquela época, final dos setenta, a música brasileira era muito forte na minha vida. Especialmente a música nordestina: Novos Baianos, Gil e Caetano, sempre, Alceu Valença, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Elomar, Xangai, o Bendengó. Descobri Cartola, Noel Rosa, os Bambas do Samba. Estava aprendendo.
Volto aos anos oitenta.
Nos frustramos com a derrota (óbvia) do Lula para o governo do Estado, ajudamos a eleger alguns deputados, estaduais e federais, os quais pregavam “desarmamento da polícia”. Lembro do psicanalista João Batista Breda (votei em 82, para deputado estadual), psicanalista, defendia a legalização do aborto, a descriminalização da maconha, a antipsiquiatria de Basaglia e Cooper; me recordo da candidata a vereadora, Caterina Koltai, e seu famoso panfleto “desobedeça”.
Estive no movimento “Diretas Já”. Um comício lindo, monstruoso na Praça da Sé, em vinte e cinco de janeiro de 1984. Quatrocentas mil pessoas, no mínimo.
Frustração.
Derrotada a Emenda Dante de Oliveira, na noite de vinte e quatro de abril, aniversário do Sarney.
Dez anos depois do êxito da Revolução dos Cravos em Portugal, amanhecemos tristes e frustrados com a certeza do que já sabíamos. Não votaríamos para presidente, ainda.
15 de março de 1985, tomou posse Sarney. Tancredo Neves, “eleito” no jogo da ditadura, misteriosamente, morreu.
O General Figueredo sentenciou: – Só eu saí!
Aquela aura falada acima, começou a mudar, porém, ainda havia uma mórbida esperança. Alguma coisa aconteceria.

Pela primeira vez, confesso, àquela época, comecei a sentir um pouco de liberdade. Andava a pé, de madrugada, pelo centro da cidade de São Paulo, ia ao Bexiga caminhando – sempre preferi andar, para poder beber -, ouvia música, discutíamos, líamos, frequentávamos os ‘Cine Clubes’. O Brasil começou a dar um salto qualitativo no mercado editorial: a Brasiliense, sob a regência de Schwacz e Caio Graco Junior, lançou pérolas no Brasil. Os vendedores entendiam de livros, aconselhavam, sugeriam, de acordo com o perfil e gosto do leitor. Era um prazer frequentar livrarias. A Brasiliense, no centro da cidade, era a melhor. Os bares eram um caso à parte: redescobri a música brasileira. Samba, Novos Baianos, Caetano, Gil, Chico, Alceu, Zé Ramalho e, claro, Raul. Sem contar os especializados em blues e jazz, outros em rock, Beatles e Stones

Votamos para presidente. Apesar do Collor.
Volto a uma questão: acima falei do espectro do neoliberalismo, da globalização. Collor já trazia consigo esses preceitos.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, a consequente queda do “socialismo real existente”, chamado assim pelo historiador Eric John Hobsbawn, em sua obra “Era dos Extremos”, produziu uma onda confusa e mentirosa: aqueles Estados que tinham o rótulo de “socialismo” eram ditaduras assassinas que, em nada, lembravam as proposituras de Marx e Engels. Caíram. Foram tarde.
Todavia, ao mesmo tempo, o pensamento entrou naquilo que se chama pós-modernidade, no qual a “verdade”, os conceitos, transformaram-se em algo totalmente subjetivo; cabendo qualquer coisa, qualquer justificativa. Verdade de cada um.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo preconizou uma defesa intransigente do “estado mínimo”, tudo deveria ser responsabilidade da economia privada. A ordem passou a ser “privatizar”, entregar bens públicos ao grande capital, sob a desculpa de que o “Estado é ineficiente”, corrupto. Não é o Estado, são aqueles que propositalmente gerem-no.
Começou-se a jogar a água da bacia com a criança dentro.
O capitalismo deixava de ser produtivo para assumir a fase especulativa: o caminho do céu eram as bolsas de valores. Turbinados pela internet, o trânsito entre as bolsas do mundo tornou-se muito mais fácil. A economia tornou-se volátil e incerta.
Ao mesmo tempo, vale notar, com a sofisticação tecnológica, passou-se a exigir trabalhadores cada vez mais qualificados. Mais um problema: como qualificar-se? Para isso é necessária Educação. No entanto, essa foi, juntamente com a Saúde, a área que mais sofreu cortes, a ponto do abandono.
Pessoas malformadas, não formadas, ignorantes, analfabetas, semianalfabetas, analfabetas funcionais, um exército de néscios forma-se.
O desemprego configura-se a marca da virada das décadas de oitenta para a de noventa.

Nesse espaço de tempo, cinco de outubro de 1988, o Brasil promulga sua nova Constituição. Chamada de Constituição Cidadã (?), traz alguns avanços. Longe do ideal, mas era o que tínhamos para aquele momento. Collor foi derrubado pelos mesmos que o puseram: a Globo e a elite política, com respaldo de parte da população que insistia em acreditar nos discursos falsos e mirabolantes do playboy. Veio Itamar Franco. Dele lembramos apenas da volta do fusca. Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente. Aliado a Antonio Carlos Magalhães, arquétipo de tudo aquilo que há de mais execrável e abjeto. Justificou-se com a célebre frase: ‘- Esqueçam o que escrevi’. Sartre chama isso de ‘má-fé’

O estelionato do plano real já estava pronto. Em trinta de junho de 1994, foi lançado. É uma falácia, pois sua conclusão é verdadeira, baixou a inflação, todavia, suas premissas são falsas. Baixar a inflação deve significar: estabilidade monetária e financeira. Houve apenas uma estabilidade monetária. A inflação baixou, em razão de não ter o que inflacionar. Os salários foram divididos pela URV – Unidade Real de Valor, que no dia trinta de junho chegou a 2.750. Pois bem, todos os salários foram divididos pelo fator: quem ganhava cinquenta e cinco mil cruzeiros (nem sei se a moeda tinha esse nome), passou a receber dois mil reais. No entanto, os preços das mercadorias, os serviços, apenas mudaram a nomenclatura para real. Trabalhador, pequeno e médio empresário, tomaram… na cabeça. Basta lembrar: em 30 de junho de 1994, o carro chamado ‘popular’, custava 7.800 reais. Hoje, não há mais carro popular. Popular não tem dinheiro para andar de ônibus. O carro mais barato custa mais de trinta mil reais. Qual foi o índice de reajuste dos salários desde então?
O desemprego continuou com FHC, junto com escândalos financeiros (o socorro bilionário aos bancos. A venda criminosa dos bancos UNIBANCO e NACIONAL para o ITAÚ, com sessenta e cinco bilhões do erário).
Quem não se lembra do asqueroso espetáculo da compra, com dinheiro público, do direito de recandidatar de FHC?
Foi reeleito.
Depois de oito anos do reinado coxinha, Lula foi eleito e reeleito.
O Brasil havia enfrentado, juntamente com o planeta, uma crise econômica em 1998, produzida pelo capital especulativo, sem poder de ação dos Estados. Custou caro.
Em 2008 viria outra. Só foi superada com a ajuda do capital público. Nos Estados Unidos, Obama retomou a receita de Keynes: o capital estatal financiará a economia privada. A fim de evitar a catástrofe.

Os oito anos de Lula se caracterizaram por problemas: fisiologismos, corrupção, acordo com a escória política do Brasil. Verdade. Todavia, foram oito anos nos quais houve avanços sociais: Lula democratizou o crédito. Garantiu àqueles que nunca tiveram nada, acesso ao mínimo. Facilitou a construção civil, um dos maiores polos de geração de emprego, ao desonerar impostos. As taxas de desemprego despencaram. Pobre passou a consumir carne, cerveja, televisão de plasma, telefone celular, automóvel. Pior: pobre começou a andar de avião. Pobre começou a ir para a ‘Disney’

A corrupção e os acordos espúrios com a corja que mama no poder do Brasil, há décadas, custou caro.
A conta viria.
A crise moral de 2008, provocada por corrupção nos Estados Unidos, alastrou-se (com a Globalização é “natural”). Sabíamos: a conta viria.
Lula deixou o governo com uma popularidade recorde: oitenta e cinco por cento de aprovação.
Com seu carisma, elegeu Dilma Rousseff.
Os coxinhas não toleraram mais essa.

Dilma governou em meio ao caos: todo tipo de pressão, interna e externa. O agravamento óbvio dos gastos irresponsáveis e corruptos chegaram com a conta. Com dignidade, cercada de inimigos, governou quatro anos. Derrotou novamente os coxinhas. O legado de Lula (acesso ao consumo, democratização do crédito) ainda fazia diferença. Contudo, dessa vez, não ia passar. Criaram o circo das ‘pedaladas fiscais’. Praticadas antes e depois de Dilma, em todos os governos e esferas de poder. Não encontraram nada que incriminasse Dilma. Não há

Veio o circo do golpe. Transmitido ao vivo pela Globo. Domingo à noite. Horário nobre.
Àquela época, bater panelas era a marca dos inimigos de Dilma, dos “petralhas”, da corrupção.
Em paralelo, deu-se o circo da Lava-Jato, cujo protagonista maior é o pequeno Moro. Fizeram um filme, cujo personagem principal era o babaca do juizinho de Curitiba e sua conje. Padilha (aquele de Tropa de Elite) fez a série “O mecanismo”.
Quase todos contra Lula, o PT; a favor da honestidade, da mudança, da nova política.
Lula foi preso e condenado. Sem provas. Apenas pela convicção do pequeno Moro.
O circo já estava armado.
O que muitos não perceberam, inclusive eu, é que um obscuro deputado, encalacrado no Congresso há vinte e sete anos, começou a ser “vendido” na mídia, a princípio, essa é a desculpa, por ser uma figura caricata. Um apologista da homofobia, das torturas, da ditadura militar. Racista, homenageou aquele que torturou Dilma Rousseff, uma mulher íntegra que ainda era presidente da República, eleita pelo sufrágio universal.
Esse inominável passou a proferir um discurso de ódio a tudo e a todos. Bradando bravatas e disparates. Numa campanha histérica, sem conteúdo, pautada em mentiras lançadas pela internet. Negando a ciência, a história (“a ditadura militar foi boa. Não houve torturas”).
Um analfabeto funcional, incapaz de falar a sério de qualquer coisa, se eximia de falar de economia, políticas interna e externa, dos problemas do Brasil. Apenas limitava-se a bradar suas sandices.

Encontrou eco em muitos: ressentidos, frustrados, gente que odeia Lula, não por ser Lula, mas por representar uma política que deu acesso ao mínimo. Gente que odeia a ideia de que aquele que faz uma obra em sua casa esteja na mesma fila do supermercado para comprar carne e cerveja. Gente que odeia entrar no aeroporto e deparar-se com um trabalhador que também irá à Disney, ainda que tenha comprado à prestação. Gente que odeia entrar numa concessionária e constatar que um assalariado esteja comprando um carro zero quilômetro. Gente que abomina a ideia de que um negro, um indígena, frequentem uma universidade pública, pior, para formarem-se médicos. Gente que odeia que LGBTQIAP+ sejam tratados, como deve ser, como um semelhante, portanto, possuidor dos mesmos direitos naturais e civis. Gente cuja opinião ‘senso comum’ é a verdade absoluta. Gente que não vê problema em brancos, ricos e letrados roubarem. Isso não é corrupção, é esperteza. Gente que não vê problema em sonegar imposto; parar em fila dupla ou tripla; furar fila; comprar produto pirata; entende que isso não é corrupção. Corrupção é somente quando o negro, o indígena, o LGBTQIAP+, o pobre e o ‘político de esquerda’ realizam. Fraudes fiscais de grandes empresas, golpes de bancos, são naturais. Enriquecimento ilícito de branco letrado é esperteza e ‘natural’. Gente que só aceita pobre, indígena, negro na cozinha, não na sala de jantar ou estar – pelo menos não para fazer companhia, sempre para servir. Gente que não admite que pobre possa comprar e gostar de vinhos caros e caviar

Ao mesmo tempo, essa gente busca refúgio em templos nos quais se vendem (literalmente) a mentira da redenção. Vomitam pecado e perdão com a mesma canalhice que defendem a tortura, o golpe, a ditadura e a mamadeira de piroca.
O golpe da derrubada de Dilma!
Elegeram o coiso.
Durante o processo de eleição foi assustador: negação da ditadura, das torturas, apologia às armas, à violência pública e privada; apologia ao nazifascismo, homofobia, racismo…
Negacionismo pleno: da Educação, da Ciência.
Ódio, ódio, ódio…
Retrocedemos.
O mundo, o Brasil em particular, desumanizou-se.
Acabou aquela gostosa aura de sonho, de utopia…

“… e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o veio da Havan sorriu”.

 

Zé Renato é professor de Filosofia da UniJales
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