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“Parasita” e as percepções de realidade através do contexto

Arquiteto Vinicius Gonzales Cuevas Martins

É evidente o sucesso do filme ‘Parasita’, do diretor Bong Joon-ho, devido às suas premiações nas principais academias e festivais de cinema mundial. O filme é direto e logo de início nos mostra que a ausência de ética e moral será uma constante em todas as famílias, porém de distintas formas e motivações. Além disso, nos oferece um panorama geral de como nós somos influenciados pelo o que está inserido à nossa volta, e o modo como influenciamos, seja ativa ou passivamente. No entanto, além das famílias retratadas, há outro elemento tão protagonista quanto: O contexto. Vezes de forma explícita, ao mostrar o dualismo da realidade das famílias; e vezes de forma implícita e sutil, como se manifesta a arquitetura, seus simbolismos, suas relações, suas experiências, e a quem ela atende. Dessa forma, o filme é certeiro ao abordar a desigualdade social, cujo tema é central, e que, na intenção de retratar apenas a situação sul coreana, acabou acertando na realidade mundial

Começando pelo contraste entre “harmonia e caos” apresentado nas casas das famílias. A casa dos “Kim” evidencia o desconforto, o aperto de uma moradia situada num semiporão, cujo nível dos ambientes é abaixo da própria rua, e a área mais alta da casa é a do vaso sanitário por uma questão de necessidade de conduzir o esgoto da casa para o sistema de coleta público. Sua estreita sala possui apenas uma pequena janela que fica no nível da rua e acima da altura dos ombros, e que, com certa dificuldade, entra ventilação, iluminação natural, ou se observa o entorno no exterior. As decorações se misturam com os utensílios da casa e do cotidiano da família, não há preocupação estética, sendo que essa, não chega nem a ser uma questão para eles, visto a situação socioeconômica em que se encontram, porém, essa preocupação muda logo no início da história, após Ki-Woo receber de presente do amigo Min, uma pedra, cujo simbolismo que ela carrega, varia ao longo do filme. Em contraponto, a casa da família “Park” esbanja harmonia desde os traços ortogonais da casa, que se enquadram perfeitamente em cenas de um ponto de fuga. A residência ostenta o estilo minimalista no design, mas não no espaço, cuja sala de estar é consideravelmente maior do que o semi porão de família Kim; as aberturas da residência garantem o conforto dos cômodos com a entrada de iluminação natural e evidencia a harmonia de experienciar espaços bem projetados. Um momento curioso no filme, é que, apesar da residência ser projetada por um arquiteto, o único personagem que nota o tom artístico que o profissional deu à casa, foi Oh Geun-sae, o homem que vivia havia quatro anos no porão, o indivíduo mais distante dessa realidade de um espaço legitimamente projetado para a garantia de qualidade de vida.
Em outra passagem o diretor parece “brincar” coma alusão de que a garantia dessa qualidade de vida da classe mais favorecida se deve às próprias famílias de menor renda, onde o próprio sujeito no porão fornece a “automação” da casa ligando as luzes do hall de acesso da mesma, de modo que o personagem aparenta certo prazer ao realizar tal tarefa, um misto de idolatria e alienação pelo senhor Park.
É interessante notar o contexto e a noção de realidade em que as famílias estão inseridas ao reparar para onde as aberturas de ambas as moradias estão voltadas. Na sala dos Kim, da estreita janela, se vê a rua, em primeiro plano se vê lixeiras, junto com as moradias de famílias em situações similares a eles, todo o entorno externo e os acontecimentos que ocorrem ao redor. Já a abertura principal da casa dos Park é voltada para o próprio jardim. Essa comparação pode sinalizar o quão “fora de contexto” está a família Park da própria cidade em que estão inseridos, visto tamanha desigualdade explicitada no decorrer do filme. Além disso, o fato de não apresentar contexto externo pode sugerir que a família considere que tudo que está à sua volta esteja numa condição semelhante ou próxima à sua, induzindo-os ao equívoco de não ser capaz de distinguir o distanciamento de suas realidades com outras famílias, ou, simplesmente, negligencia-las.

Além do posicionamento das aberturas das residências, é notável a situação experienciada pelo homem do porão, cuja realidade para ele passou a ser sua própria existência por anos. Essas três experiências de viver em diferentes espaços é uma forma bem direta de como a arquitetura influencia na percepção da realidade que todos os envolvidos sentem nos lugares que frequentam, e, não é à toa que todos desdenham da casa dos Park, a única casa que há uma sensibilidade com as pessoas que vão habitar tal espaço

Outros momentos que reforçam as distintas noções de realidade, é notar a relação que a família Park tem com a própria cidade. O uso majoritariamente de carro pode causar uma percepção que não seria a mesma do que com o uso de transporte público ou peatonal. A compreensão da dinâmica da cidade se desenvolve a partir da forma pessoal de usufruí-la. O uso do carro pelos Park, por exemplo, é visível o desinteresse e a falta de relação com seu entorno, o que importa é apenas o destino final, comprometendo a forma de vivenciar a própria cidade e o que ela pode oferecer se experienciada de uma outra forma de se deslocar.
As questões de contexto urbano também se mesclam com as questões sociais do filme em uma das cenas mais impactantes, o momento da chuva. A expressão máxima da dicotomia predominante das classes sociais. O grande impacto é ao notar que: ao longo da fuga dos Kim da residência dos Park, todo o trajeto percorrido na cidade evidencia até onde atendem certas infraestruturas urbanas e para quem atendem as mesmas.A cidade vai se “transformando” durante o trajeto e essa dicotomia é reforçada ainda mais ao destacar a verticalidade nos planos da obra. O momento em que descem uma grande escadaria, é uma alusão muito simbólica do abismo social frente à toda sociedade inserida na obra (não só dos personagens abordados, mas muito além deles), sendo que, quanto mais abaixo você está situado, menor é seu suporte às infraestruturas urbanas oferecidas, porém, maior é a demanda; dentre elas podemos destacar em cena: Drenagem urbana, saneamento básico, planejamento urbano,distribuição de energia, coleta e até mesmo acessibilidade. Um exemplo notável de como o diretor Bong Joon-ho inseriu essas referências de forma proposital na obra, é na cena que encerra a passagem dos Kim da vizinhança dos Park: há um plano em que os acompanhamos fugindo até o momento que a câmera desce até enquadrar um ralo grelha no espaço público, ironicamente, infraestrutura essa que era de maior necessidade naquele momento para a família Kim e sua vizinhança.
Em paralelo a esse acontecimento, testemunhamos a primeira fatalidade ocorrida, a primeira governanta é vítima da violência causada pela mãe da família Kim em frente ao seu marido, trancado no porão, sendo obrigado a encarar a vida de sua esposa esvair-se e pedindo socorro da única forma possível.O filme faz uma transição interessante neste instante, onde, no momento em que Oh Geun-sae (o homem do porão) pede socorro da forma que encontrou, por meio de código Morse, porém, sem sucesso; a mãe dos Park desabafa com a governanta Kim o descontentamento que passou ao esperar por 15 minutos a ambulância para socorrer seu filho, mais uma referência de quem possui a garantia de assistência médica, outra infraestrutura básica e, teoricamente, direito de todos.
A partir desse momento, a dualidade das realidades abordadas no filme ganha cada vez mais distanciamento. No dia seguinte, a família Kimacorda em um abrigo emergencial junto a todas as famílias que perderam mais um de seus direitos básicos não garantidos, sua moradia. Enquanto isso, a preocupação da dos Park é com a festa de seu filho mais novo, festa essa que,a família Kim também é requisitada para trabalhar e garantir tal acontecimento. Neste momento vemos o quão supérfluos são os problemas da família Parkem relação aos Kim e de OhGeun-sae.
Após toda mobilização para organizar o aniversário, o filme chega ao seu ápice de violência. Seja de Oh Geun-sae, que, após viver anos num porão, presencia a morte de sua esposa, ou seja, o contexto que já não era perto de ser digno para se viver, e que se encontrava para preservar sua própria vida, torna-se a prisão mais angustiante possível. Seja do senhor Kim, que ataca o senhor Park ao notar dele a insatisfação de sentir o fator de maior incômodo dessa família: o cheiro dos Kim, o cheiro da insalubridade que ultrapassa a linha dos limites estipulados pelo senhor Park; cheiro de quem não tem seus direitos garantidos àquelas infraestruturas e assistências básicas discorridas anteriormente. E seja também da família Park que, em momento algum aparenta se preocupar com o que ocorre com as pessoas ao seu redor além de sua própria família, negligenciando qualquer consideração pela família que também necessitava socorro.

É importante esclarecer nessa passagem que jamais se justifica o uso de qualquer tipo de violência abordada no filme, entretanto, essa reação nos transmite uma mensagem de todo o conflito ocorrido. Nenhum dos atos de violência aparenta ser uma direta aversão entre os personagens envolvidos, há algo que os motiva a agir com violência, porém não é justificada pelo ódio que tal personagem tenha com outro, e sim, a reação aparenta surgir de uma consequência de todo o contexto experienciado pelos personagens que recorrem à violência, motivados a buscar uma ilusória justiça ou vingança com as próprias mãos;porém, o cenário é de um crescente desencadeamento de sabotagem coletiva, e a única coisa que prevalece é o caos total

O filme se encerra mostrando as consequências após o choque de todas essas realidades experienciadas em diferentes contextos após o conflito ocorrido na casa dos Park. Porém, nada efetivamente muda na realidade dos personagens. Não há sequer um entendimento do contexto em que eles estão realmente inseridos, ou o que levou a ocorrência de todos os acontecimentos anteriores, não é questionado em nenhum momento pelos personagens o porquê da constante e crescente violência e nem mesmo o que justificaria, todos parecem estar conformados com a realidade em que estão submetidos e certos dos meios que buscam de reverter suas realidades, sem buscar subverter os seus problemas individuais.
Todavia, ainda existe algo que instiga a curiosidade: por que o próprio título do filme “Parasita” é indicado no singular?
Seria “parasita” algum dos personagens abordados?
Ou seria “parasita” uma complexa estrutura de estratificação social em que todos estão inseridos e que os tornam tanto agentes como vítimas dessa estrutura que estimula o crescimento do distanciamento social, do individualismo, sabotagem, e da violência reproduzidos por todos os personagens cegamente?
Fazendo um paralelo com a atualidade em que vivemos, percebemos que essa noção da experiência do contexto é colocada à prova no mundo todo com a pandemia do coronavírus e, principalmente, com a situação de quarentena. Essa é uma relação que vemos muito bem ilustrada nas cenas do filme, ao mostrar as condições de moradia de cada personagem.

Não é difícil concluir que, das moradias destacadas, a mais adequada para as questões de isolamento social seguramente seria a da família Park, porém, uma grande parcela da sociedade que não possui as condições de trabalho, nem sequer as condições mínimas de infraestrutura, vivem em condições semelhantes às da família Kim, ou pior, como a de Oh Geun-sae. Situações de maior vulnerabilidade como essas ficam evidentes que o cumprimento do isolamento social seja inviável. Da mesma forma, não podemos justificar a partir disso que as medidas protetivas não devem ser garantidas a todos. Entretanto, como garantir tais medidas para essa parcela da sociedade, que tem constantemente negados seus direitos mais básicos, e a situação de vulnerabilidade é negligenciada desde antes da pandemia? Onde a própria pandemia do coronavírus não é nem de perto o primeiro dos riscos à vida dessas pessoas, visto a constante violência em que estas estão expostas

É estranho pensar que, o momento da pandemia tornou-se um embate constante de conciliar a economia de um país em crise, com as milhares de vidas humanas que se perdem com o passar dos dias.Como se a conciliação da economia fosse equivalente à preservação de qualquer vida perdida, e como se preservar essas vidas significaria abrir mão da economia do país, consequências da era da pós verdade. Todavia é nesta condição de quarentena que muitos questionamentos do aparente normal que vivíamos anteriormente pairam no campo das ideias.
Como era a nossa relação com a arquitetura e com o urbanismo nas cidades? A cidade nos oferecia espaços de lazer e atividades ao ar livre que tanto nos fazem falta hoje, ou o próprio espaço de lazer já era “socialmente isolado” de um público geral? A arquitetura dos espaços da cidade contribuía ou dificultava com áreas públicas para frequentá-las livremente? A cidade é um espaço que acolhe ou hostiliza?
Por fim, retomando a cena fatídica da chuva no filme, podemos nos imaginar naquela grande escada pública do filme e especular: em qual posição cada um de nós nos encontramos na nossa sociedade que reforça políticas que favorecem o abismo social?
No topo da escada? No meio? No fim mais abaixo?

Como no filme, caso nos encontremos no topo, é importante que reconheçamos os nossos privilégios e saibamos diferenciá-los dos nossos direitos; caso não nos encontremos no topo da escada, isso já indica que alguns de nossos direitos básicos, possivelmente, já nos foram violados. Independentemente de nossas posições, é necessário que saibamos reconhecer e diferenciar os nossos privilégios dos nossos direitos, e que reivindiquemos a garantia desses direitos antes que estes sejam violados e depois taxados como privilégio

 

Vinicius Gonzales Cuevas Martins, arquiteto, formado pela Universidade Mackenzie, apaixonado por todos os segmentos artísticos

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